Tratado problemático e inconstitucional
NO MAIOR sigilo, a Santa Sé conseguiu extrair do governo brasileiro uma Concordata. E agora apressa o Congresso Nacional para que referende o tal acordo. E sem discussão.
Em novembro de 2008, quando da assinatura da Concordata, no Vaticano, os cardeais e os diplomatas do Itamaraty foram unânimes: o acordo apenas consolidava a legislação brasileira concernente à Igreja Católica.
Que ficassem tranquilos os crentes das demais religiões, assim como os não crentes, porque nada mudaria.
Pois muda -e muito.
Não dá para acreditar que a Igreja Católica precise de uma Concordata para regulamentar sua atuação. No Brasil, onde ela desfruta de privilégios históricos, que interesses estariam ameaçados? Nenhum. Por quem? Por ninguém.
O que a Igreja Católica teme é o rápido aumento do número de evangélicos, de agnósticos e de ateus, correlativo à redução do número de católicos. Tenta r reverter esse quadro é um direito de seus dirigentes, mas não instrumentalizando o Estado como na época do império, quando era religião oficial.
Dos 20 artigos da Concordata, 3 tratam de temas especificamente educacionais. Aliás, a Igreja Católica é a única instituição que sempre fechou questão em torno do ensino religioso nas escolas públicas.
Dentre outras religiões e denominações cristãs, as igrejas evangélicas foram tradicionalmente contra a inclusão dessa disciplina nos currículos dos sistemas públicos de ensino. As igrejas pentecostais, mais recentes, não fecharam questão sobre isso -umas são manifestamente contra, outras se dividem.
O conteúdo do artigo 11 do acordo remete a algo que a cúpula da Igreja Católica já teve e quer de volta: reserva de mercado no ensino público. Ela pretende manter uma disciplina no currículo das escolas públicas, contra o que existe, há muito, um amplo movimento, que se fortalece em difer entes setores e pelas manifestações de personalidades históricas do calibre de Rui Barbosa e Anísio Teixeira.
Aliás, o ensino religioso nas escolas públicas é a única disciplina do currículo escolar mencionada pela Constituição. O simples fato de ela constar da Carta Magna já denota a existência de uma força contra a qual esse dispositivo foi inserido -a laicidade prevalecente no âmbito do professorado e da população em geral, religiosa ou não. Laicidade que só quer pôr cada coisa em seu lugar, ensino na escola, e educação religiosa na família e na comunidade de culto.
A Concordata afronta, essencialmente, o artigo 33 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Ele determina que o conteúdo da disciplina ensino religioso seja estabelecido pelos sistemas de ensino (especificamente pelos respectivos conselhos de educação), depois de ouvidas entidades civis constituídas pelas diversas confissões religiosas.
Assim, pode não h aver "ensino religioso católico", como estipula a Concordata, nem de nenhuma confissão específica.
Se esse conteúdo será de caráter histórico, sociológico, antropológico ou uma mescla das doutrinas religiosas conveniadas etc., isso dependerá das decisões de tais entidades civis.
A Concordata obriga o Estado brasileiro a tomar partido numa luta que divide o campo religioso: o ensino deve ser confessional ou interconfessional? Ora, um Estado laico não pode se envolver num problema desse tipo, que só diz respeito ao campo religioso -portanto, privado.
Por isso, a Constituição Federal foi lacônica ao tratar o tema. Ela não conseguiu evitá-lo, dadas as pressões do momento, mas garantiu um mínimo de liberdade curricular, determinando que o ensino religioso nas escolas públicas fosse facultativo para os alunos.
Tudo somado, o Congresso tem três boas razões para rejeitar a Concordata: ela é inconstitucional, porque feita com uma instit uição religiosa, o que é vedado; ela é desnecessária para a livre prática do culto católico romano; e ela cria problemas com os crentes e os não crentes justamente onde há entendimento e tolerância.
LUIZ ANTÔNIO CUNHA , 66, sociólogo e educador, é professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro, coordenador do Observatório da Laicidade do Estado e autor de "Educação, Estado e Democracia no Brasil".
Nenhum comentário:
Postar um comentário